O Dilema de Bazinha

Bazinha sentou-se em um tamborete improvisado de banco e ali ficou, olhando pra rua, observando a enxurrada, que já transbordava da sarjeta, chegando a cobrir a calçada. Perplexa, o olhar parado, sem querer acreditar no que tinha ouvido. 

Após deixar Mariana na porta, no final da aula, Ellena encontra Bazinha no patamar da escada do mirante, com a mão no quadril e olhar inquisidor. 

– Ellena, tu andaste arrumando este mirante? Senti cheiro de óleo de peroba e os móveis estão brilhando, a cama arrumadinha.  

– É, eu dei uma arrumada, estava meio empoeirado, e tu sabes que eu gosto de ficar aí, deitada na rede, lendo. É o lugar mais ventilado da casa. 

– Puxa, podias ter me pedido que eu arrumava, tu sabes que tens problema com poeira. 

Ellena ficou preocupada de Bazinha desconfiar de alguma coisa, mas achou que tinha dado uma boa desculpa. Precisava tomar mais cuidado. Sabia que era um segredo difícil de guardar, mas não tinha alternativa, o risco sempre iria existir. Só não sabia até quando iria conseguir manter essa relação em segredo. Mas já não podia viver sem ela. Estava disposta a pagar o preço. 

Na quinta-feira seguinte, Bazinha já ia a meio caminho da mercearia quando começou a trovejar. O céu foi ficando escuro, o vento mudando de direção, soprando forte a ponto de levantar a poeira da rua. Resolveu voltar pra pegar um guarda-chuva. Quando entrou em casa, estranhou que as duas não estivessem na varanda. Imaginou logo que Ellena tivesse levado Mariana para ver alguma coisa no mirante, talvez escolher um livro, ou observar a mudança repentina do tempo.  

Bazinha foi até seus aposentos, pegou o guarda-chuva e, na volta, como já começassem a cair os primeiros pingos de chuva, preferiu avisar Ellena que seria melhor deixar para ir à mercearia no dia seguinte. Subiu a escada, mas quando já estava nos últimos degraus, percebeu que a porta estava fechada, e teve a impressão de ter ouvido alguns sussurros e gemidos. Ficou assustada, chegou mais perto da porta e reconheceu as vozes de Ellena e Mariana.  

Não podia acreditar nos seus ouvidos. Não, não podia ser o que ela estava pensando. Com o coração angustiado, perplexa, preferiu sair logo dali. Desceu a escada nas pontas dos pés e foi para as suas compras, mesmo debaixo de chuva. Estaria imaginando coisas, é claro. Sua patroazinha se envolvendo com a aluna? Que bobagem, claro que não era nada disso. Era coisa da sua cabeça. Ainda não tinha 50 anos, será que já estava variando

Mas percebia a ternura com que as duas se tratavam, a ansiedade com que Ellena esperava os dias de aulas. Foi juntando os pontos, não queria admitir, mas não podia mais negar a realidade. E lembrou também de uma segunda-feira em que Ellena pediu para ela ir comprar sorvete lá longe, na Rosa de Maio. Meu Deus, elas estão tendo um caso, sim. Pensou que já deveria ter percebido isso antes, mas se recusava acreditar. 

Mal pôs os pés na calçada e a chuva começou a engrossar. Não queria voltar pra casa, não queria ouvir de novo o que tanto a tinha angustiado, muito menos criar constrangimento para as duas. Resolveu seguir adiante, tentando se proteger sob os beirais das casas, e apressou o passo até alcançar a quitanda do seu Newton Ferreira, na esquina da Rua dos Afogados com a Rua da Alegria, para se abrigar. Com a roupa encharcada, já não conseguia equilibrar o guarda-chuva contra a força do vento. Entrou na quitanda, cumprimentou seu Newton e pediu licença pra esperar ali até a chuva passar. Sentou-se num tamborete improvisado de banco e ali ficou, olhando pra rua, observando a enxurrada, que já transbordava da sarjeta, chegando a cobrir a calçada. O olhar parado, perplexa, sem querer acreditar no que tinha ouvido. A sua menina, que ela tanto amava, que ajudou a criar desde que nasceu, envolvida numa relação espúria, imoral mesmo. Sexo entre duas mulheres, pelo amor de Deus, sempre achou que isso era uma perversão, uma doença, um pecado. E ficou ali matutando, angustiada, até que, depois de um bom tempo, já no final da tarde, a chuva arrefeceu e ela decidiu voltar pra casa. Foi caminhando devagar pra dar tempo de Mariana sair antes dela chegar. Preferia não encontrar com nenhuma das duas, mas Ellena ainda estava na varanda, arrumando o material das aulas. 

Sem levantar o olhar, explicou que não tinha conseguido fazer as compras por causa da chuva e foi direto para o seu quarto. Não conseguia encarar a patroa, olhar nos olhos dela. Sentia vergonha por ela. Sentia-se culpada por ter ouvido o que ouviu. Por ter, inadvertidamente, de certa maneira, invadido a privacidade delas. 

Serviu o jantar porque não tinha outro jeito. Deixou para lavar as louças no dia seguinte, e logo se recolheu aos seus aposentos. Mas não conseguia pregar o olho. Aqueles gemidos não lhe saíam da cabeça. O que teria acontecido com sua menina? Será que Mariana é quem a tinha influenciado para esse caminho? Não, claro que não, ela já conhecia bem a aluna de Ellena, tinha se afeiçoado por ela, uma moça tão educada, carinhosa com todos. Sabia do seu comportamento exemplar, do carinho que tinha pela avó, da sua dedicação aos estudos. Admirava a amizade das duas e o carinho com que Ellena preparava as aulas. Enfim, duas pessoas tão boas envolvidas numa relação como essa. Não dava pra creditar. O que as teria levado a se entregar dessa maneira uma à outra?  

Religiosa, pensou como Deus teria permitido que isso acontecesse. Será que Deus as perdoaria? Será que Deus, na sua infinita bondade, admitiria esse tipo de relacionamento? Será que Deus as havia feito assim? E se Deus as fez assim, seria mesmo um pecado? 

E lembrou-se da sua doença, da tuberculose terrível que quase a matou. Lembrou-se de como Ellena havia insistido com os pais para que ela permanecesse na casa deles e pudesse ser cuidada por ela. Tinha bem vivos na memória o carinho e a dedicação de Ellena, ainda quase uma criança, sofrendo junto com ela, dando-lhe os remédios na hora certa até que ela se recuperasse. Lembrou-se das aulas que Ellena dava pra ela todas as noites, que a alfabetizou e fez dela uma pessoa instruída como ela nunca podia imaginar. Tudo que ela aprendeu, mesmo sem ter frequentado escola, devia à dedicação e ao carinho de Ellena. 

Uma coisa estava clara pra ela: não abandonaria sua patroa e amiga em hipótese alguma. Resolveu que não iria recriminá-la, nem julgá-la. Se fosse uma doença, iria cuidar de Ellena com o mesmo carinho com que tinha sido cuidada por ela quando esteve doente. Se fosse da natureza dela, iria procurar aceitar, compreender e acolher. Percebia como Ellena ficava feliz quando Mariana chegava, como a companhia da aluna lhe fazia bem. Achava tão bonito o carinho com que se tratavam. Não, isso não pode ser uma doença. Doença nenhuma faz tão bem para uma pessoa como essa relação faz para as duas. Será que a natureza delas é diferente?  

Tentava pegar no sono, esquecer o que tinha ouvido. Mas os sussurros e gemidos continuavam ecoando na sua cabeça. Pensava no que poderia acontecer se seu Arthur descobrisse. Ou D. Zizi, ou Donanna, Deus me livre. Já pelo meio da madrugada decidiu que não iria mais questionar a relação das duas, ao contrário, iria protegê-las, isso sim, ajudá-las no que estivesse ao seu alcance. O amor e a gratidão que sentia por Ellena, o carinho que já sentia por Mariana, tão delicada com ela, estavam acima de qualquer coisa. Até de um relacionamento como esse. Certa ou errada, era uma relação tão bonita, tão pura mesmo, havia tanto carinho entre as duas, que deveria haver espaço no coração do Criador para essa forma de amor. 

Imagino como as duas devem se sentir sozinhas, pensou. Não podem contar com a compreensão nem o apoio de ninguém. De ninguém, não. Tenho vontade de chegar pra Ellena e dizer que elas podem contar comigo, sim. Só não tenho coragem de tocar num assunto tão íntimo. Mas eu e ela nos entendemos tão bem que nem preciso falar nada. Ela vai perceber. Tenho como mostrar isso pra ela sem precisar falar.  

Aliviada com a sua decisão, em paz com o seu coração, já quase amanhecendo o dia, conseguiu pegar no sono.  

Na quinta feira seguinte, antes da hora da aula, Bazinha preparou um refresco de tamarindo, colocou numa pequena jarra de vidro com algumas pedras de gelo, levou numa bandeja com dois copos e, discretamente, deixou em cima da escrivaninha do mirante, onde as duas costumavam se encontrar. Em seguida saiu para as compras, como faz toda semana. 

Ellena e Mariana tomam um susto quando entram no cômodo. Mariana não entendeu nada, mas Ellena, sim. Realmente ela e Bazinha se conheciam tão bem que muitas vezes nem precisavam de palavras pra se comunicar. Ela sabia muito bem o que Bazinha queria lhe dizer com aquele gesto.  

– Mariana, tu sabes o que esse refresco aqui significa? 

– Não consegui entender nada, Ellena. Não foste tu que colocaste aí? 

– Não, foi Bazinha.  

– Meu Deus! 

– Foi a maneira que ela encontrou pra nos dizer que já sabe da nossa relação, que nos aceita e compreende nosso sentimento. Tinha muita vontade de poder me abrir com ela, mas tinha medo de decepcioná-la. Agora vejo que, mais uma vez, posso contar com ela. Essa é minha amiga de verdade! Uma mulher simples é capaz de aceitar nossa relação. Por que as outras pessoas, supostamente instruídas, não? Por que se incomodam tanto com a vida dos outros? Por que não vivem as suas próprias vidas e nos deixam viver as nossas? 

Quando Bazinha voltou da mercearia, no final da tarde, Mariana já tinha ido pra casa. Ellena esperou por ela na varanda. Bazinha deixou as compras sobre a mesa da cozinha, sem tirar os olhos do chão. Não sabia como a patroa iria reagir. Ellena aproximou-se dela, segurou-a carinhosamente pelo braço e deu-lhe um longo abraço. As duas se emocionaram, abraçadas. Mais uma vez não precisaram de palavras. Talvez um dia até viessem a conversar sobre o assunto, mas, naquele momento, não era necessário. 


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