Escândalo ou uma história de amor?

Lembro bem de quando ouvi falar nesse caso pela primeira vez. É que, dias depois, naquela mesma sala, ouvi a Rádio Difusora interromper a sua programação normal para dar uma notícia extraordinária: John Kennedy havia sido assassinado, em vinte e dois de novembro de 1963. Parece que todos que são desse tempo se lembram de onde estavam quando receberam essa notícia que comoveu o mundo. 

Eu e meu primo jogávamos futebol de botão na mesa da sala, enquanto nossos pais ouviam música e conversavam. Mas o jeito como eles falavam me despertou a curiosidade. Sentados nas pontas do sofá e das poltronas, corpos inclinados para frente, quase encostavam as cabeças, no entusiasmo do assunto misterioso. 

Estiquei o ouvido e consegui pescar fragmentos esparsos da conversa, que o cuidado deles não conseguiu evitar. Ouvi com muita clareza a palavra escândalo, e me liguei mais ainda.  Eles se referiam a um casal da alta sociedade local que tinha viajado para passar uma temporada no Rio de Janeiro, numa tentativa de abafar a repercussão de um acontecimento inusitado. Na vitrola, Nat King Cole cantava “I’m in the Mood for Love” *, que eu adorava, mas naquela hora só serviu pra me atrapalhar. Mesmo com a música ao fundo, deu pra ouvir que eles falavam de um adultério, o que não era tão incomum na época, assim como hoje. 

Fiquei pensando na finalidade daquela viagem. O fato já tinha acontecido, o povo não iria esquecer tão cedo, ou nunca mais, melhor fariam se tivessem ficado em casa. Ou separavam ou assumiam. Viajar pra quê? 

Só que era a esposa, e não o marido, como pensei a princípio, quem teria cometido o adultério. Uma jovem bonita, recém-casada, professora de História, havia deixado de dar aulas no tradicional Colégio Rosa Castro para se dedicar à sua nova condição de dona de casa. Não ficava bem continuar trabalhando, já que o marido, um homem de posses, podia sustentá-la. 

Nesse tempo, o trabalho da mulher era quase que uma humilhação para o homem. Esposas, de modo geral, só trabalhavam fora quando seus maridos não eram capazes de sustentar a casa sozinhos. 

Louco por uma história (lida, ouvida ou, de preferência, inventada), gostava de misturar fatos reais com outros imaginados e contar em forma de versos, tipo cordel. Com a atenção voltada para a conversa dos adultos, me descuidei do jogo. Mesmo perdendo, passei a me concentrar mais na conversa que na partida. Só fazia jogadas pela direita, pra ficar mais perto do sofá onde nossos pais conversavam. Será que eu tinha ouvido direito? Seria isso mesmo? Foi quando observei os olhos esbugalhados da minha mãe, da minha tia e do meu tio, atentos para a história que o meu pai contava, preparando-se para a revelação que viria a seguir. Acho que puxei pra ele esse gosto de contar histórias. O adultério não teria sido cometido com outro homem, mas com uma moça. Caramba! Um escândalo e tanto, pelos conceitos da época. 

Numa cidade pequena e conservadora, com sua rotina arrastada, influenciada pelos casarões e sobrados seculares, nada como um bom escândalo pra sacudir a monotonia do dia a dia. Na conversa deles, os detalhes menos comprometedores eram falados sem os cuidados do segredo. 

Apaixonada pelo magistério, a professora tinha obtido licença do marido para dar aulas particulares em casa, sem remuneração, para a neta da costureira da sua mãe, que se preparava para o vestibular da Faculdade de História. Esbelta, um pouco mais alta que a professora, a aluna aparentava mais que os seus dezenove anos. Uma linda afro-morena, pele clareada por sucessivas miscigenações, mas ainda conservando traços da sua ancestralidade negra, a moça era um belo exemplo das vantagens da mistura de etnias. Pude perceber o entusiasmo do meu pai descrevendo os seus olhos castanho-claros, que mudavam de tom conforme a claridade, como se o mel se dissolvesse em luz até chegar a um suave amarelo esverdeado. Estremeci só de pensar. 

Com meus catorze anos recém-completados, baseado no relato do meu pai, mas certamente influenciado pelos meus hormônios, fiquei imaginando a moça a caminho da aula particular, abraçada a seus cadernos, cheirosa, com cabelos ainda úmidos do banho, num vestido solto, de alça, com seu par de olhos de mel dissolvido em luz, e eu a seguindo com os meus olhos cobiçosos, para observá-la por outro ângulo, depois que passasse. Encantado com os olhos, talvez nem reparasse nas suas formas generosas, descritas pelo meu pai com muita delicadeza.  

Distraído com a história, perdi o jogo de lavada. Nem lembro mais do placar. Hora de ir pra casa, recolhi os botões e fomos caminhando pela Rua do Passeio, eu, minha irmã mais nova e meus pais, devagar, prestando atenção na calçada mal iluminada.  

Numa límpida noite de estio, com um fiapo de Lua nova já descendo no horizonte, pros lados da Praia Grande, todo o protagonismo ficava por conta da exuberante Via Láctea, com sua miríade de estrelas esparramadas num arco que abraçava o céu de uma ponta a outra. 

Inspirado, já tecendo a trama pelo caminho, esperei que todos se recolhessem, peguei papel e caneta e comecei a escrever. Entrei pela madrugada, com a luz fraquinha do abajur da cabeceira, e fui escrevendo e rimando, tentando lembrar dos detalhes.  

E xingando Nat King Cole, que tanto tinha me atrapalhado.  

Preenchendo as lacunas com a imaginação (e quantas lacunas tinha essa história, e quanta imaginação eu tinha), sem conseguir parar de escrever, varei a noite até que o sono me venceu, e eu dormi por cima dos versos. 

Claro que, numa relação entre duas jovens, não poderiam faltar momentos de forte conteúdo erótico. Ainda mais narrados por um adolescente metido a poeta. Ia escrevendo e escondendo as folhas, pra que ninguém lesse a minha escrita atrevida. 

Dias depois, concluída a narrativa, agora era tratar de esconder. Afinal, essa era a minha “obra” mais consistente até aquele dia. Dobrei as folhas (e não eram poucas) bem dobradinhas, procurei uma fresta entre uma tábua e outra do velho assoalho da sala, num canto bem escondido, e lá as encaixei cuidadosamente. De vez em quando ia lá conferir, pra ver se ainda estavam no lugar. Nunca reli, com medo de ser surpreendido pela minha mãe com aqueles versos nas mãos. 

Certo dia, chegando em casa, senti cheiro de cera, o que pra mim era sinônimo de festa.  Lembrei que estávamos na semana do Natal, e as empregadas estavam fazendo uma faxina geral, varrendo o assoalho e espalhando a cera com o escovão, exatamente no local onde eu havia escondido a minha obra. Que já não estava mais lá. Será que, com o peso do escovão, escorregou pela fresta e caiu no porão? Será que as moças da faxina a tinham encontrado? E se encontraram e levaram pra minha mãe? Claro que eu não iria perguntar se alguém tinha visto ou guardado. Fiquei na minha. 

Procurei me conformar com a ideia de que os meus versos tinham se perdido para sempre. Pela fresta do assoalho, atravessaram a linha do tempo em direção ao passado e foram se esconder naquele porão secular, onde ninguém nunca tinha entrado. Talvez estejam por lá até hoje, encobertos pela poeira do tempo.  

Perder os versos, com muita dor, acabei aceitando. Mas a história, bem, aquela não era uma história que se deixasse perder assim. Merecia ser contada. Nem tanto pelo inusitado do caso, mas pelo turbilhão de emoções e sentimentos que poderia envolver uma relação proibida, numa cidade aprazível, porém puritana, num tempo de recato, religiosidade e preconceito. 

Uma relação afetiva entre duas mulheres não fazia parte do imaginário coletivo da cidade, mas certamente sua revelação despertaria forte reprovação e censura. Ainda mais sendo uma delas afro descendente. Como essas jovens teriam lidado com isso? Teriam sufocado os seus sentimentos e desejos? Ou teriam enfrentado o preconceito e encontrado uma maneira de viver a sua relação? 

Queria abordar o assunto com empatia, delicadeza e respeito. Não iria desistir de contar essa história.  

Nossa cidade, impregnada de passado, guardava ainda muito dos hábitos de tempos remotos. Sobranceira à baía de São Marcos, virada para o poente e envolvida pelos rios Anil e Bacanga, no seu entorno ocorre, diariamente, uma das maiores diferenças de marés do mundo, fazendo de São Luís quase que uma ilha dentro da outra, ilhada em si mesma e nos seus costumes. 

A força renovadora da maré enchente, que invade as calhas dos rios e se impõe sobre a sua correnteza, invertendo o sentido do fluxo das águas, é a perfeita metáfora para o impulso incontrolável, transgressor, que inverte o sentido do desejo e do afeto, se impondo sobre a correnteza dos costumes. 

Com seus casarões e sobrados de fachadas de azulejos, cada um com sua história e seus segredos, debruçados sobre calçadas de pedra de cantaria e enfileirados ao longo de estreitas ruas de paralelepípedos, ficar na janela era uma maneira muito apreciada de interagir com a cidade. Observando o movimento das ruas, dos bondes, dos poucos carros passando; comunicando-se com os vizinhos através de acenos, cumprimentando os passantes (Olá, como tem passado?), que de vez em quando paravam para uma prosa rápida, a vida girava em torno das janelas. 

Até os namoros começavam com as moças nelas debruçadas e os rapazes na calçada se esticando para segurar a sua mão. Só depois de meses, e de um pedido formal de licença, eram autorizados a entrar e sentar numa cadeira no corredor de entrada, próximo à sala, não muito longe dos olhos dos pais da moça. Um assovio embaixo da janela anunciava para a namorada que o seu amado havia chegado. E cada um tinha o seu próprio assovio, personalizado, pra não ser confundido. Mas, por algum código de costumes ancestral, as moças nunca assoviavam, só os rapazes. 

Os pregoeiros de rua, com sua voz empostada, passavam anunciando suas mercadorias, beneficiando-se da proximidade entre as ruas e as casas. Os noturnos vendiam pamonha quentinha, quebra-queixo, derressol (um doce cujo nome vinha do preço, dez réis só). Os diurnos ofereciam camarão fresco, sorvetes de coco e bacuri, e mais o carvão de varinha, combustível imprescindível para os antigos fogões de alvenaria, ainda muito utilizados, além dos fogareiros e ferros de engomar. Bastava ouvir o grito cantado do vendedor e correr até a janela. 

É claro que, nesse contexto, dar conta da vida alheia era uma atividade praticada com muito gosto. E um ambiente propício para fofocas e meias verdades, especialmente as de cunho sexual, que era então um assunto tabu. Muito desejo reprimido às vezes precisava ser extravasado através da imaginação.  

Anos depois, por um desses acasos que só acontecem na ficção, já morando no Rio de Janeiro, conheci uma moça que teria vivenciado de perto o caso do adultério inusitado de 1963, o que imediatamente me reacendeu o entusiasmo de contar essa história. Dizendo-se amiga próxima de uma das personagens, achei que ela poderia saber de muitos detalhes. Embora alguns poucos anos mais velha que eu, interessei-me imediatamente por ela e iniciamos um breve relacionamento.  

Como uma Sherazade moderna, ela foi me contando, aos pedaços, um pouco a cada um dos nossos encontros, o que sabia. Ou dizia que sabia. Às vezes eu desconfiava que ela estivesse usando o mesmo recurso da famosa personagem da lenda persa, inventando histórias só pra prolongar a relação. Nem precisava, eu realmente estava gostando dela. Como o namoro durou bem menos que “As Mil e Uma Noites”, e terminou de forma abrupta e pouco amigável (ela sempre imaginando que eu tinha mais interesse na narrativa do que na narradora), ficaram ainda muitas lacunas e, não posso negar, uma certa saudade. 

Mas o seu relato, si non era vero, era ben trovato. Tudo fazia sentido. E algumas passagens eu tive oportunidade de confirmar. 

Interessada na importante participação dos negros na construção da sua cidade, Mariana convence a professora a acompanhá-la nas pesquisas sobre a saga do seu ancestral escravizado. Visitam arquivos, museus e igrejas da cidade, até se depararem com alguns envelopes pardos, empoeirados, esquecidos numa velha prateleira do Convento de N. S. do Carmo. Recheados de folhas de papel ao maço, já amareladas pelo tempo, traziam um surpreendente relato, escrito a bico de pena. Pelo lado de fora do envelope, com uma letra elegante, lia-se: 

“Padre Lusitano Marcolino Barreto – Memórias – Alcântara, Maranhão – 1903”. 

Entre pesquisas, passeios de bonde e conversas descontraídas, saboreando sorvetes de frutas da terra, Ellena e Mariana vão descobrindo afinidades, tornando-se amigas, confidentes, até se descobrirem enredadas nessa relação inesperada, que mudaria radicalmente seus destinos. 

Mesclando personagens reais e imaginários, costurando retalhos de histórias de vidas verdadeiras com outras que, por descuido do destino, não chegaram a existir, preenchendo as lacunas com a imaginação, relato pra você, amigo(a) leitor(a), esta história, em forma de romance, quase seis décadas depois de acontecidos os fatos, com a emoção e a poesia que a minha modesta, mas esforçada narrativa foi capaz reproduzir. 

Espero que você, ao ler, se emocione tanto quanto eu, ao escrever. 

* I’m in the Mood for Love, música de Dorothy Fields e Jimmy Mchugh


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